Como muitas crianças, Letícia aguardou o dia 12 de outubro com expectativa. No entanto, o triciclo que esperava ganhar não era um simples brinquedo: representava a superação de mais uma luta, entre tantas que vem travando, desde bebê, quando foi diagnosticada com uma das formas mais severas de epilepsia, a Síndrome de Lennox-Gastaut. Para ela, o óleo de Cannabis sativa, produzido em Marília por uma associação, trouxe esperança e qualidade de vida.

Filha da enfermeira Nayara Mazini, que juntamente com Cláudia Marin foi uma das primeiras mães do Brasil a obter habeas corpus para o cultivo domiciliar da Cannabis e a produção artesanal de óleo para fins medicinais, a pequena Lelê é uma guerreira. Aos quatro anos, os médicos lhe deram uma expectativa de, no máximo, mais cinco anos de vida. Entretanto, desde o início do tratamento com a Cannabis, em 2018, as crises convulsivas vêm sendo controladas e Lelê leva uma vida quase normal.

Letícia foi a grande inspiração para Nayara que tornou-se pesquisadora na área e somou esforços com pessoas que também testemunharam os benefícios do tratamento com a Cannabis sativa em familiares. Assim, em 2021 foi constituída a Abracamed (Associação Brasileira de Cannabis Medicinal) com sede campestre em Marília e um polo de desenvolvimento tecnológico e de inovação na capital paulista, que não tem nenhuma relação com outra instituição, a “Maria Flor”.
EVOLUÇÃO
Em entrevista ao JM nesta semana, três diretores contaram como foi o processo que culminou com a chegada de parceiros importantes como a Universidade Federal de São João Del Rey, de Minas Gerais, responsável pela pesquisa, análise, certificação e controle de qualidade do óleo produzido em Marília.

“A gente faz um trabalho multidisciplinar, cada um na sua área. A parte que a Nayara trouxe foi fenomenal e nós complementamos com a tecnologia e os trabalhos sociais pela Associação”, observou o presidente da Abracamed, Sérgio de Lara Biancardi. Conforme disse, “o cultivo e o plantio estão baseados nas autorizações que nós temos. Muitas pessoas nos procuram para terem acesso por um custo mais baixo e que ainda não é tão baixo quanto nós gostaríamos por causa de toda estrutura envolvida”.

Graças ao plano de trabalho elaborado em parceria com a universidade, a associação está bem estruturada em seu plano de pesquisa científica e soma mais de três mil associados no País desenvolvendo os mais variados tratamentos, em diversas patologias. O controle é rigoroso, frisou o presidente, destacando que “são recolhidos impostos sobre cada frasco doado 100 por cento ou utilizado por pacientes nos tratamentos que acontecem por seu preço de centro de custo com o óleo de Cannabis dispensado”.

Ele prosseguiu explicando que “o montante recolhido sobre impostos acontece em sua fonte nos processos de compra , produção, desenvolvimento de tecnologia e inovação que envolvem profissionais ou terceiros devidamente preparados e ressentidos nos órgãos responsáveis, sendo que até mesmo os 30 por cento da produção, que são doados a quem não pode pagar, também tem sua parte de contribuição fiscal para o governo brasileiro. Isso demonstra o quanto pode se gerar benfeitorias para toda sociedade e pessoas envolvidas dentro dos braços da Associação (ABRACAMED), seus parceiros, profissionais envolvidos, colaboradores e voluntários em suas atuações sociais como instituição, recolhendo tributos para a União e demonstrando o quanto a Cannabis medicinal pode ser boa para o Brasil”.
Nayara Mazini, Diretora Executiva Institucional, informou que a área social da entidade contempla não apenas a gratuidade ou descontos progressivos para pessoas de baixa renda. O suporte é completo, desde o encaminhamento para consulta com médicos parceiros até o acompanhamento do tratamento.
A triagem dos pacientes é realizada por comprovação de hipossuficiência (Cad-Único) e por instituições parceiras como a ACC (Associação de Combate ao Câncer) e Projeto Amor de Criança voltado às crianças com paralisia cerebral. Dessa forma, os pacientes incluídos no Projeto Social da Abracamed são os que, comprovadamente, necessitam de ajuda.
CONTROLE BIOLÓGICO

Uma das fundadoras da Abracamed, a psicóloga e terapeuta holística Berenice de Lara é a Diretora de Pesquisa Científica e quem financiou os primeiros equipamentos da entidade. Referência na área de Práticas Integrativas e Complementares em Saúde, ela revelou que o cuidado com o cultivo da Cannabis em estufas é tamanho que moscas e pulgões são eliminados com a pulverização de florais.

Ela explicou o controle biológico frisando que não se utiliza nenhum tipo de defensivo agrícola e nem mesmo fertilizantes químicos. Tudo é feito de modo a preservar ao máximo a qualidade da produção, o que inclui tocar duas horas diárias de música clássica para as plantas.
A segurança é outro fator destacado pelos diretores: a propriedade rural, cuja localização não pode ser revelada, é monitorada por um complexo sistema de câmeras controlado pela base em São Paulo para evitar furtos tanto das flores da Cannabis quanto do óleo. E por falar nisso, cada frasco é etiquetado seguindo as normas da Anvisa e possui QR-Code para que o paciente e o médico possam acessar as informações sobre o produto.

Universidade Federal de São João Del Rey
“Temos o controle de todos os processos, desde a semente, da plantinha que a gente clona, até o óleo que a gente entrega com toda a rastreabilidade, toda a segurança. Temos todos os procedimentos operacionais padronizados. Não entregaria para nossos pacientes associados nada que não daria para a minha filha”, assinalou Nayara, para quem “nossa missão é entregar um produto que seja uma ferramente terapêutica na vida daquela pessoa para que ela tenha saúde e qualidade de vida”.
SEMINÁRIO
Nayara Mazini lamentou a dificuldade no acesso às informações sobre a Cannabis no Brasil. Doutoranda, ela tentou publicar artigos em revistas científicas nacionais e, por ser sobre Cannabis, o material nem chegou a ser avaliado. Por isso, o II Seminário sobre Cannabis Medicinal do Centro Oeste Paulista, que acontecerá nos dias 25 e 26 de novembro em Marília, será uma grande oportunidade para que toda a população possa ter acesso à ciência.
Promovido pela Abracamed em parceria com a Universidade Federal de São João Del Rey e Escola de Defensoria Pública de São Paulo, o evento conta com o apoio do CEBRID (Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas) e Unimar, que cedeu suas instalações.
Com entrada gratuita, o seminário é destinado aos pesquisadores, profissionais de saúde, pacientes e familiares, estudantes e poder público: “A Cannabis hoje está para a medicina como a penicilina esteve antigamente. Isso é velado por conta de preconceito, estigma e tabus. Desconstruir tudo isso é só por meio de um evento onde as pessoas tenham acesso de fato”, assinalou Nayara Mazini.
Ela acrescentou que “com responsabilidade, trazendo profissionais de referência no País, só assim avançaremos nesta pauta e mostraremos para a sociedade que isso é ciência e tecnologia de cuidado em saúde; não estamos falando em outras pautas”.
O óleo de Cannabis vem sendo empregado no tratamento de inúmeras doenças como Parkinson, Alzheimer, diabetes, fibromialgia, esclerose múltipla, transtorno de estresse pós-traumático, ansiedade, anorexia, esquizofrenia, epilepsia, autismo, endometriose, dores crônicas etc.